Sexta-feira, 18 de março

Quinze para uma da tarde. Volto às Ciências Sociais. Quando havia ido embora pela última vez disse  tal como Carlota Joaquina um dia no cais: "que bateria meus sapatos para não levar comigo sequer a areia daquela terra". Estou lá novamente, ainda que por poucos instantes. Na cantina há mesas e muita erudicão servida em compotas de sobremesa. "Eles são discretos e silenciosos". Um professor e  quatro aspirantes a tal cargo discutem algo sobre reajuste salarial. "Executam, segundo as regras herméticas desde da trituração, a fixação,a destilação e a coagulação". A refeição é ácida. O professor pede uma coca-cola e um café. Diante da tv alguém assiste. Penso em cafeína e gastrite. Alguém resiste? Falam de cargos e carreiras. Mas sou eu quem quer sair dali às carreiras. Ando três quarteirões. Passo em frente a espelunca etílica. Sigo. Chego. Lá estão: uma vizinha-amiga-professora querida e alguns amigos. Há mesas. Há meses não ia por lá. Um copo d'água na mão e muitas idéias sobre a mesa. Uma taça de vinho na outra e muitos rostos, desejos, coxas e beijos. O tempo passa, o tempo voa, a grana vai acabando, mais uma cerveja vai chegando e todo mundo está de boa... Mas não quero permanecer muito tempo! "Está faltando uma coisa em mim... e é você amor, tenho certeza, sim...". O carteiro passa, me reconhece  de imediato e entrega o envelope. Que amargura! Abro a carta e me deparo com a fatura.   É hora de ir embora, puxar o bonde, ir para lugar algum, para não sei onde... Pagar a conta. "Se alguém por mim perguntar, diga que eu só vou voltar depois que eu me encontrar"

Quarta-feira, 16 de março

Expediente encerrado. As formalidades não. Percorro o longo corredor e distribuo cumprimentos, sorrisos e apertos de mãos. Não, não é a descrição de um político em plena campanha. Sou apenas eu, um ser que pensa que existe, às vezes age, às vezes assiste. Fere com ferro, cheio de artes e manhas, deixa escapar um berro, bate e apanha... não exatamente na mesma intensidade! Atravesso a Santos Dumont, no trecho em que ela mais parece provinciana rua do que avenida metida a besta. Tomo um ônibus. Há assentos vagos próximos a porta dianteira. Acabo por sentar. Pouco depois uma moça senta ao meu lado. Talvez seja dois ou três anos mais velha do que eu. O ônibus pára. Pela porta dianteira entra um senhor idoso, talvez tenha uns setenta e cinco anos. Nessa idade é tempo de andar de ônibus sem pagar e continuar por vezes tendo os direitos desrespeitados. É o motorista que finge que não te vêr e não pára. É o assento preferencial ocupado por alguém que bem poderia ser seu neto... e finge també que não está vendo você. Eu estava no lugar dele. Tenho idade para ser neto dele. Mas, não fingi nada, e isso não é orgulho. Levanto. Ofereço o lugar. Ele agradece e diz que não é necesário, pois vai descer três paradas depois. Insisto. Ele mais uma vez agradece e sorri. Aproxima-se da moça que estava ao meu lado e diz: "esse rapaz é muito educado... significa que ainda se faz jovens muito bons". Agora é a vez da moça sorrir. Agora é minha vez de fingir que não estão falando de mim. Tenho facilidade de ficar sem graça com elogios. O senhor vai em pé, parado nos degraus. Dois palmos acima da sua cabeça há a seguinte inscrição: "não pare nos degraus". Uma provocação. Chego ao terminal onde tomarei outro ônibus: 804 - Aldeota, nome pomposo para o morro da cidade, central dos  Conjuntos São Pedro, Morro da Vitória, Morro das Placas... No terminal, enquanto espero o ônibus, um homem passa entre as pessoas que também esperam, em fila dupla. Parece que toda a gente só faz esperar. Ele diz coisas bonitas para um dia de chuva, embora fizesse sol, e mais que isso: muito calor. E só depois conta a sua história. E pede ajuda. Uma mulher comenta com a outra: "esse homem pedindo esmola não é o mesmo que vende bombons?" A outra responde: "sim e o que é que tem? ele num tem duas mãos? dois olhos? então pode ter duas profissões, não?". Elas soltam gargalhadas. O homem está contando a sua história. Deve ter uns trinta e dois anos. É mulato. Veste calça jeans, sandálias japonesas e camisa de botão. Conta que é epilético. As pessoas que esperam não dão bola pra ele. Lembro do escritor Lima Barreto. Também mulato. Também epilético. No Rio de Janeiro do seu tempo também não lhe deram muita bola. Desprezado, marginalizado, vítima de vários preconceitos, inclusive os de cor. Até mesmo o gênio Machado de Assis o desprezou, quando não o aceitou na sua "Academia Brasileira de Letras", nome pomposo pra um clubinho formado por tanta gente fresca de nariz em pé. A história segue. A roda gira. As pessoas... ah! elas esperam. O ônibus chega. Abarrotado de pesssoas que esperaram e vão esperar... por ele, por outros ônibus e muitas outras coisas... Gira a roda. Um ri. Outro chora. Assim também eram as máscaras, as "personas" do teatro grego. Daí o termo personagem... A Grécia de Platão e Aristóteles, mitos, alegorias e cavernas. Ensinamentos, ócio criativo e balelas. Tanta coisa impregnada na gente. Coisas como senso comum. Hoje delicadeza e bom senso, artigos incomum. Puxo a cordinha. "Trimmmmmm". A luz acende.  O ônibus pára. A porta se abre e eu desço com a conta paga.

Segunda-feira, 14 de março

Um passeio solitário em um lugar tipicamente identificado com o imediatismo do tempo e a efemeridade das pessoas e das relações por elas tecidas às vezes é tudo do que se precisa para respirar a solidão, "que poeira leve"... Fui ao shopping resolver pendências do cartão de crédito - o dinheiro de plástico da sociedade idem -, ou seja, para alguém que faz da crítica uma atividade prazerosa: eis aí um prato fundo "com toda a fome que há no mundo". Para minha surpresa (ou decepção?) não houve aborrecimentos. Almocei yakisoba. Piruei um pouco e !pasmém!: parei diante da loja da Kipling e fiquei a reparar nos modelos e preços. Assisti ao filme "O Discurso do Rei". Um ser humanao que estava na fileira de trás do cinema num determinado momento do filme disse: "Bixa, ele arrasa com a cara do Rei". Dei uma risada. O filme foi interessante, embora estivesse com um pouco de sono e a poltrona parecia desconfortável... coisas de quem vai ao cinema sozinho sem ter com quem compartilhar ombros e abraços... Num dado instante um certo alguém que, como um samba de Noel Rosa, "não tem tradução" acarinhou meu rosto: era ela, aquela que só existe em português, era a saudade com "seu vestido vermelho e a sua boca", a mesma que vive a perguntar "mas quem disse que eu te esqueço" e me vira pelo avesso e "que revira meu avesso". Ao final, respirei fundo a "poeira leve", olhei ao redor e como ninguém me observava: abri meu melhor sorriso. Ela estava comigo. E ainda entre lábios que se abriam contentes e deixavam transparecer esmaltados dentes falei: "foi uma tarde feliz!" A conta do dia estava paga.