Quarta-feira, 16 de março

Expediente encerrado. As formalidades não. Percorro o longo corredor e distribuo cumprimentos, sorrisos e apertos de mãos. Não, não é a descrição de um político em plena campanha. Sou apenas eu, um ser que pensa que existe, às vezes age, às vezes assiste. Fere com ferro, cheio de artes e manhas, deixa escapar um berro, bate e apanha... não exatamente na mesma intensidade! Atravesso a Santos Dumont, no trecho em que ela mais parece provinciana rua do que avenida metida a besta. Tomo um ônibus. Há assentos vagos próximos a porta dianteira. Acabo por sentar. Pouco depois uma moça senta ao meu lado. Talvez seja dois ou três anos mais velha do que eu. O ônibus pára. Pela porta dianteira entra um senhor idoso, talvez tenha uns setenta e cinco anos. Nessa idade é tempo de andar de ônibus sem pagar e continuar por vezes tendo os direitos desrespeitados. É o motorista que finge que não te vêr e não pára. É o assento preferencial ocupado por alguém que bem poderia ser seu neto... e finge també que não está vendo você. Eu estava no lugar dele. Tenho idade para ser neto dele. Mas, não fingi nada, e isso não é orgulho. Levanto. Ofereço o lugar. Ele agradece e diz que não é necesário, pois vai descer três paradas depois. Insisto. Ele mais uma vez agradece e sorri. Aproxima-se da moça que estava ao meu lado e diz: "esse rapaz é muito educado... significa que ainda se faz jovens muito bons". Agora é a vez da moça sorrir. Agora é minha vez de fingir que não estão falando de mim. Tenho facilidade de ficar sem graça com elogios. O senhor vai em pé, parado nos degraus. Dois palmos acima da sua cabeça há a seguinte inscrição: "não pare nos degraus". Uma provocação. Chego ao terminal onde tomarei outro ônibus: 804 - Aldeota, nome pomposo para o morro da cidade, central dos  Conjuntos São Pedro, Morro da Vitória, Morro das Placas... No terminal, enquanto espero o ônibus, um homem passa entre as pessoas que também esperam, em fila dupla. Parece que toda a gente só faz esperar. Ele diz coisas bonitas para um dia de chuva, embora fizesse sol, e mais que isso: muito calor. E só depois conta a sua história. E pede ajuda. Uma mulher comenta com a outra: "esse homem pedindo esmola não é o mesmo que vende bombons?" A outra responde: "sim e o que é que tem? ele num tem duas mãos? dois olhos? então pode ter duas profissões, não?". Elas soltam gargalhadas. O homem está contando a sua história. Deve ter uns trinta e dois anos. É mulato. Veste calça jeans, sandálias japonesas e camisa de botão. Conta que é epilético. As pessoas que esperam não dão bola pra ele. Lembro do escritor Lima Barreto. Também mulato. Também epilético. No Rio de Janeiro do seu tempo também não lhe deram muita bola. Desprezado, marginalizado, vítima de vários preconceitos, inclusive os de cor. Até mesmo o gênio Machado de Assis o desprezou, quando não o aceitou na sua "Academia Brasileira de Letras", nome pomposo pra um clubinho formado por tanta gente fresca de nariz em pé. A história segue. A roda gira. As pessoas... ah! elas esperam. O ônibus chega. Abarrotado de pesssoas que esperaram e vão esperar... por ele, por outros ônibus e muitas outras coisas... Gira a roda. Um ri. Outro chora. Assim também eram as máscaras, as "personas" do teatro grego. Daí o termo personagem... A Grécia de Platão e Aristóteles, mitos, alegorias e cavernas. Ensinamentos, ócio criativo e balelas. Tanta coisa impregnada na gente. Coisas como senso comum. Hoje delicadeza e bom senso, artigos incomum. Puxo a cordinha. "Trimmmmmm". A luz acende.  O ônibus pára. A porta se abre e eu desço com a conta paga.

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